Somos, seres humanos, resultado da diversidade e por isso tão imensamente ricos. Ao longo de milhares de anos da nossa história enquanto espécie trocámos genes e saberes, ideias e formas de fazer, credos e sonhos; percorremos terras, criámos territórios, fomos imigrantes e emigrados; enfim … misturámo-nos e recriámo-nos. Somos, afinal, produto de quase tudo e de todos.
Mas há ainda quem feche os olhos a esta belíssima História, embora ela esteja bem registada no nosso património genético e cultural. Hoje, a diversidade é frequentemente sinónimo de exclusão e esta traz consigo a pobreza, a falta de protecção, de tecto, de alimento e de alento…
Neste labirinto universal de tantas histórias que o Passado nos legou, deixamos aqui uma que nos recorda que o diverso e o diferente fazem parte da nossa história comum; e são dos bens mais valiosos de que a humanidade se deve orgulhar.
Foi há 29000 anos e teve lugar num vale bem profundo, de paredes calcárias quase verticais, pontuadas por abrigos rochosos que serviram de refúgio a grupos de caçadores paleolíticos. Num desses abrigos, um grupo de caçadores de um clã que utiliza regularmente o sítio para acampamento temporário enterra um dos seus membros mais jovens junto a uma reentrância ali existente. O evento é preparado com todo o cuidado, seguindo uma série de gestos que a Arqueologia pôde descodificar. O grupo abre uma pequena depressão no solo, queima uma ramada de pinheiro silvestre e dispõe as cinzas no seu interior. Sobre elas coloca o pequeno corpo de uma criança que pereceu durante o seu quarto ano de vida. A criança é colocada de costas, ligeiramente flectida para a sua esquerda, braços estendidos ao longo das ancas e pés juntos. Vai embrulhada numa mortalha tingida de ocre vermelho; na cabeça leva um gorro ornamentado com caninos de veado; no pescoço um colar de conchas de caracol do mar. Antes do fecho da cova é colocado o corpo de um pequeno coelho entre as suas pernas, quem sabe para o acompanhar na viagem que se segue.
Durante milhares de anos o contexto sepulcral manteve-se praticamente inalterável até à sua descoberta acidental em 1998, pouco tempo antes da celebração da quadra natalícia. O Menino do Lapedo é dado a conhecer à humanidade na noite de consoada, pela televisão nacional.
Os estudos entretanto realizados ao esqueleto desta criança revelaram um conjunto de características morfológicas consideradas arcaicas, muito próximas das observadas nos grupos neandertais. Estes dados implicavam que, em determinado momento da sua coexistência, as populações neandertais e as populações anatomicamente modernas se tenham cruzado entre si, resultando em descendência fértil. Esta hipótese gerou desconfiança e polémica à época, foi debatida no meio científico, mas também na sociedade, impulsionou as investigações sobre a origem da nossa espécie. Hoje, 20 anos após esta descoberta, a hipótese então colocada tornou-se um dado científico inquestionável, confirmado pela ciência genética.
Somos, humanos, fruto milenar do movimento e do cruzamento de populações e de culturas diversas e é por esta razão que a classificação legal do Menino do Lapedo como Tesouro Nacional assume uma enorme relevância no tempo que nos coube a todos partilhar.
Saibamos recordar esta história quando alguém nos bater à porta!
no Abrigo do Lagar Velho, no Vale do Lapedo (Leiria)
Ana Cristina Araújo e Ana Maria Costa
Biografia
Ana Cristina Araújo é arqueóloga e Ana Maria Costa é geóloga. Trabalham, ambas, no Laboratório de Arqueociências (LARC) da Direcção Geral do Património Cultural (DGPC), em Lisboa, onde produzem conhecimentos sobre o Passado. Têm, igualmente, dedicado muito do se tempo a divulgar a ciência arqueológica através de conferências, visitas guiadas, guiões e conteúdos para museus destacando-se The Lapedo Child and Other Stories from Lagar Velho Rock Shelter, inaugurada no Archaeological Museum in Zagreb, Croácia, em Dezembro de 2018, encontrando-se ainda em itinerância por diversos museus de cidades croatas.
Legenda da Fotografia composta
Da esquerda para a direita: esqueleto do Menino do Lapedo montado em laboratório (Foto JP Ruas| ADF); conjunto de adornos sobre canino de veado e concha de caracol do mar (Foto JP Ruas| ADF); Abrigo do Lagar Velho, visto de Norte (Foto F. Almeida); esqueleto em processo de escavação (Foto J. Zilhão); Fotografia retirada da curta-metragem Uma História com 29 000 anos, recriação imaginada do enterramento do Menino do Lapedo, produção da ArqueoHoje Lda para o Museu Municipal de Leiria.