Conta a lenda que a Rainha Santa Isabel certo dia levava no regaço, como era seu costume, pão para dar aos pobres, quando o seu esposo, D. Dinis, a surpreendeu nessa atividade que reprovava. Questionada pelo soberano, a Rainha respondeu “são rosas, Senhor, são rosas”. E por milagre o pão em rosas se converteu.
Mas porque haveria El Rei D. Dinis reprovar a caridade praticada pela esposa? Não assistimos nós hoje à alegria de tantos poderosos por verem as esposas entretidas a entreter os pobres com caridade (sim, que as questões de pobreza são da mesma família da descriminação pelo género)? Seriam os poderosos de então pessoas insensíveis, ao contrário dos atuais? Não me parece, se atentarmos nos factos incontestáveis de que as desigualdades avançam de forma galopante e que sendo o mundo hoje capaz de produzir os bens e os serviços capazes de suprir as necessidades de todas as pessoas na superfície terrestre, a pobreza permanece como testemunho dramático dessas desigualdades.
A moral da lenda aponta para a bênção divina a quem procura combater a pobreza. Mas a realidade da história foi ficando do lado de D. Dinis.
Ele, como muitos outros monarcas do Reino de Portugal e de muitos outros reinos, tinham duas visões sobre os pobres, os indigentes, os humilhados que mendigavam pelas ruas. Uns eram autorizados a mendigar, porque o “destino” ou a fé assim o ditava. Eram viúvas, órfãos, pessoas com deficiência, ou frades mendicantes. Mas os outros eram vistos como preguiçosos, vagabundos sem honra e de mau caráter, que deveriam ser, depois de açoitadas em público, colocadas em trabalhos forçados para o florescimento da agricultura e dos pinhais do Reino.
Cerca de 750 anos depois, o que é que avançámos quanto a esta perceção preconceituosa (em qualquer das versões, a dos “bons” e a dos “maus” pobres) acerca da pobreza? Muito menos do que seria necessário e justo. Na verdade, ainda hoje prevalece uma perceção que tende a olhar apenas para os atributos e características individuais dos pobres. Com isso ocultam-se as dinâmicas estruturais, de ordem económica, social, política e cultural que geram esses atributos e que repercutem nas suas histórias e condições de vida. Afirma-se ainda hoje uma visão distorcida do mundo que omite as forças de dominação, estigmatização e distribuição iníqua de recursos, capacidades e oportunidades, as quais colocam certas pessoas, famílias e grupos em situação de exclusão social.
Fácil é culpar uma pessoa que chega ao patamar mais profundo da destituição. Será culpada a pessoa sem-abrigo que, em plena crise do Covid-19, ouve criticar quem não está em casa? Quem cuida da angústia e da “revolta resignada” que experimentará ao ouvir tal crítica? Mais difícil, mas mais justo, é democratizar a sociedade, reduzir as desigualdades escabrosas que estão na base de todas as crises, quer as coletivas, quer as individuais, capacitar as pessoas e oferecer-lhes condições para poderem ter real controlo sobre as suas vidas.
Assim, a quem prossegue na condenação dos mais desfavorecidos que a nossa economia e a nossa sociedade produzem, eu, que não sou santo nenhum, só tenho a lembrar: “São pessoas, Senhores, são pessoas”. Com os mesmos direitos que nós, incluindo o direito a recuperarem a dignidade e a autonomia que lhes permitam cumprir os deveres de todos como cidadãos plenos da nossa democracia.
Lisboa, 15 de março de 2020
Luís Antunes Capucha
Sobre o autor:
Sociólogo, Diretor do Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas do ISCTE-IUL e investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, desde 1987. Membro do Conselho Nacional de Educação. Os principais temas de pesquisa são as políticas de luta contra a pobreza e a exclusão social, as políticas sociais, as políticas de educação, formação e emprego, as culturas populares, a reabilitação de pessoas com deficiência e as metodologias de planeamento e avaliação. É autor de livros, capítulos de livros e artigos de revista e outros títulos (mais de uma centena e meia) publicados em Portugal, Reino Unido, Alemanha, França, Espanha, Itália, Brasil, Mauritânia, Bélgica e Angola. Apresentou comunicações e conferências em mais de duzentos encontros científicos em Portugal e no estrangeiro. Foi Director-Geral do Departamento de Estudos, Prospetiva e Planeamento do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (1998-2001), Director-Geral da Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação (2006-2008) e Presidente da Agência Nacional para a Qualificação (2008-2011). Foi membro do Comité de Emprego da União Europeia. É um colaborador ativo de associações diversas, de caráter social, profissional e local.