O diálogo começa nos olhares. Os olhos fogem? Ficam? Aproximam-se? Baixam ao nível do chão? Afastam-se para o lado?
Existe um embaraço repentino, indisfarçável, vindo do confronto entre duas maneiras de viver e da distância entre o que se faz (o que faço) e o que devia fazer-se (o que devia fazer) para mitigar a injustiça. Uma casa, pelo menos. Fácil de desenhar, como o sabem as crianças; difícil de aceder, como algumas crianças e muitos adultos sem suficientes meios de subsistência também sabem.
De um vendedor da revista Cais aproximo-me sem estranheza. Somos cúmplices de um mesmo ofício: ajustar pequenas peças de um puzzle injusto por forma a torná-lo um pouco mais harmonioso. Os olhares encontram-se, iguais, por breves momentos, na convicção de que confluem para a aproximação entre lugares e entre vidas dispostas ao pleno direito de os habitar, sem medo, sem embaraço. Dignamente.
Capacitação, empregabilidade, inclusão, os principais objectivos visados pela Associação Cais, deveriam ser comuns à sociedade, dos vários poderes ao simples dever de cidadania. Etapas de um desígnio superior: a erradicação da pobreza.
A conjuntura política e social da actualidade é hostil a este desígnio. À pobreza endémica junta-se a nova pobreza, criada por uma economia a braços com crises sucessivas, sem ânimo para vencer o maior dos desafios, o de inverter o trajecto de crescimento da desigualdade. Atirados para a margem, os excluídos tentam disfarçar a sua condição ou entregam-se ao desalento. Expulsos uma e outra vez dos lugares por onde transitam os que a vida escolheu, tornados invisíveis para não incomodar quem se apropria do espaço comum. Antes de fugir, de olhar para o lado, pensemos que ninguém escolhe ser expulso. Pelo menos com o olhar digamos sim, somos iguais, podia ser eu nessa condição, vamos descobrir um espaço ao qual possamos pertencer em conjunto.
Que uma entidade nos convoque com a eficácia da Cais é um estímulo e uma aposta que só podemos apoiar, se não quisermos eximir-nos ao papel de cidadãos adstritos aos valores que a justiça contém.
Ler a revista Cais é igualmente uma forma de conhecer iniciativas que se elevam acima dos básicos apoios à inclusão. As actividades desportivas, artísticas, humanitárias, promotoras da não discriminação em todo o espectro que abrange (e não só a que deriva da pobreza), o envolvimento na luta contra as alterações climáticas, demonstram como se interligam os vários problemas que enfrentamos.
A Cais cumpre a sua parte, ao levantar do chão os desistentes, através das suas múltiplas actividades.
Tenho ao meu lado uma colectânea de contos sobre pobreza e exclusão, publicada em 2004, por ocasião do décimo aniversário da revista. Chama-se Margens – Outros de Nós e reúne textos de vários escritores portugueses.
Os autores podem ser intermediários destas vozes por escutar, as que vivem a dor de uma humanidade retalhada. Contribuirão, assim, com a sua arte, para a ligação entre os humanos, como outros de si mesmos, uma forma de viver plenamente, entre iguais. A capacidade de nos imaginarmos como outros é a essência da ficção. A arte, a palavra, a música, linguagens partilhadas, podem opor-se à violência da desigualdade.
O sistema de justiça, actuando casuisticamente, em conformidade com os princípios constantes dos instrumentos que proclamam os direitos humanos universais, dos quais se destacam, entre os da última geração, o direito à habitação, à educação, à saúde, e, sempre, à dignidade da vida humana, tem também um papel a desempenhar neste esforço colectivo.
Cumpramos pois todos nós – poder politico, sistema de justiça, autores, cidadãos – o decisivo papel que nos foi atribuído: cuidar uns dos outros, para que enfim os olhares possam confluir, sem estranheza, em igualdade.