A primeira tese de doutoramento feita em Portugal sobre mulheres sem abrigo tem natureza exploratória, mas devia ser lida por todos, em particular por quem trabalha na área: Women´s Homelessness and Housing Exclusion in the Northern Lisbon Metropolitan Area: An In-depth Exploratory Study.
A investigadora Sónia Nobre desmonta as estratégias que muitas usam para se camuflar: viver em casa de familiares ou amigos; trabalhar como empregada interna; apressar a coabitação com um/a namorado/a. Acontece a situação progredir de forma negativa para um quarto, um centro de alojamento, a rua. Uma vez no espaço público, encontram outras formas de se encobrir a situação. “Pernoitam em sítios escondidos, pelo mínimo tempo possível, habitualmente sozinhas.”
Quem olhar para muitas delas nem imaginará. “Desafiam a imagem convencional da pessoa que está na rua, de aparência descuidada, suja, carregada de pertences”, escreveu Sónia Nobre. “Ficam, por exemplo, no aeroporto, numa sala de espera de hospital, num carro.”
A investigadora não considerou apenas as que pernoitam no espaço público (rua, jardim, viaduto, estação de transportes públicos), num local precário (carro abandonado, vão de escada, casa abandonada), num centro de alojamento temporário, num alojamento específicos para pessoas sem casa ou num quarto pagos pelos serviços sociais. Adoptando a “Tipologia Europeia sobre Sem-Abrigo e Exclusão Habitacional”, incluiu, por exemplo, quem vive num centro para mães solteiras ou numa estrutura de emergência ou numa casa-abrigo para vítimas de violência doméstica.
As mulheres que entrevistou não se definem como sem-abrigo, mas como “mães, avós, filhas, esposas, amigas, trabalhadoras, ajudantes de outros, vítimas de violência doméstica, ex-reclusas, toxicodependentes e por aí fora”. “As suas fontes de motivação e alegria passam amiúde pelas relações interpessoais, pelo anseio de retomar contacto ou de voltar a viver com os seus filhos.”
Sónia Nobre sublinha que as mães não deixam de se identificar enquanto tal, apesar de os seus filhos estarem à guarda de familiares ou instituições. E que esse aspecto tende a ser simplesmente ignorado. “Quando entram nos serviços, o seu estatuto de mães não é reconhecido e, por conseguinte, as suas necessidades relacionadas com a maternidade não são tidas em conta.”
Não serem reconhecidas como mães desacompanhadas prejudica o seu processo de inclusão. “A resposta habitacional para quem tem crianças é mais rápida. Quem não tem crianças não tem prioridade.” Parece-lhe uma perversão. “Estas mulheres muitas vezes separaram-se dos filhos por não terem condições para ficar com eles em contextos de violência doméstica. Depois não conseguem ser apoiadas para se reunir com eles.”
Este alerta, no meu entender, todos deve convocar, em particular quem trabalha na área. Aproveite-se este 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, para reflectir sobre esta realidade e melhor acolher a luta específica das mulheres em situação de sem abrigo na luta global pelos direitos das mulheres.
Ana Cristina Pereira (Jornalista)
Entrei nesta casa (PÚBLICO) em 1999, estava a acabar o curso de Comunicação na Universidade do Minho. Dedico-me sobretudo a temas de direitos humanos e exclusão social, como pobreza, género, protecção de crianças e jovens, envelhecimento, violência doméstica, drogas, reclusão, assuntos relacionados com população LGBT+, população cigana, população com deficiência, população migrante, políticas de igualdade e de protecção social. Alguns trabalhos que por aqui fui fazendo deram origem aos livros Meninos de Ninguém (2009), Viagens Brancas (2011), Movimento Perpétuo (2016) e Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país (2022). De trabalho voluntário resultaram os livros Desafios – Direitos das Mulheres na Guiné-Bissau (2012), que co-assino com Nelson Constantino Lopes, e Mulheres de São Tomé e Príncipe (2018), que co-assino com Dário Pequeno Paraíso. As inquietações com o rumo do jornalismo, por sua vez, deram origem a um pequeno ensaio, Todas as Vozes/All the Voices (2014), que co-assino com Mike Jempson, e a uma oficina sobre diversidade nos media e outra sobre direitos humanos nos media, que vou orientado uma vez ou outra. Tenho feito parte de vários projectos colectivos. Estou a experimentar a escrita de teatro documental: a minha primeira peça, Onde o Frio se Demora, foi co-produzida pela Narrativensaio e pela Casa das Artes de Famalicão (2016) e a segunda, Agora é diferente, pela Feiticeiro do Norte (2019).